sábado, 1 de maio de 2021

Um conto de Samhain

 

                Desde criança eu sempre fui fascinada pelo Halloween e pelos filmes de terror, mesmo que eu não pudesse me fantasiar e pedir doces de porta em porta. Tive a fase de contar histórias de terror, assim como a de ir em festas que eram mais baladas do que as infantis festas de Halloween. Hoje eu comemoro o Samhain e como sigo a Roda do Ano pelo hemisfério Sul,  a data não bate com o Halloween, mas mesmo assim me trás de volta a mesma nostalgia da minha infância.

                O conto que eu vou contar não é de terror, não vai te impedir de dormir e eu particularmente o acho muito bonito. Eu o encontrei há quase um ano  quando comemorei o meu primeiro Yule, mas eu  o achei tão bonito e significativo que nunca o esqueci e hoje vou compartilhá-lo com vocês, quem sabe assim vocês não entram um pouco mais no clima ou entendem um pouco mais sobre este sabbat.

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Lyla sentou no chão em uma noite de céu limpo e estrelado, ao olhar para um lago o reflexo da lua cheia a lembrou de uma pérola redonda e branca... Mas, logo um grupo de crianças chegou  arrancando  - a dos seus pensamentos, Lyla sorriu para cada uma delas enquanto as mesmas sentavam ao seu lado formando um circulo.

- Vamos começar? Vou contar para vocês a história de como o Deus Cornudo se sacrifica todos os anos para dar força a Grande Mãe e garantir que ela sobreviva ao frio inverno que se aproxima. Estão prontos?

As crianças afirmaram entusiasmadas enquanto se embriagavam nas palavras de Lyla que tinha o tipo de voz gostosa de se ouvir contando uma história.

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Essa história aconteceu há  pouco tempo, na verdade ela se repete todos os ano s nessa mesma época. O Sol sumia a Oeste, as aves noturnas deixavam os seus ninhos, debaixo das árvores correndo para as suas tocas os pequenos animais fugiam do frio cortando que logo chegaria. Está é a época do Deus Cornudo e só as crianças mais fortes sobrevivem a um inverno tão rigoroso. O Sol continuou abaixando cada vez mais até que não passasse de uma linha fina que separava o céu e a terra no horizonte, tudo foi colorido de um belo tom avermelhado com um ar mágico e então, a luz se foi. A Lua crescia no céu e um vento gelado passava entre os troncos das árvores enquanto ao fundo era possível ouvir o som de uma flauta, um som límpido e cristalino.

Naquele momento ,todos os animais da floresta pararam para ouvir aquele belo som, até mesmo as orgulhosas árvores noturnas cessaram o seu orgulhoso canto. Por entre as árvores ,apenas o som  da flauta ecoava por entre as árvores, e ninguém ousou fazer mais nenhum som para não interromper aquele mágico momento.

Atravessando o lago, logo depois do grande carvalho estava a fonte da bela musica. Sentada em uma pedra coberta de limo, um ser robusto com tronco e rosto de homem, pernas cobertas de pelo, cascos de cavalo e majestosos chifres de alce balançava ao som da flauta de bambu enquanto observava a donzela que dançava ao som da sua música. A donzela possuía longos cabelos claros e lisos que escorriam até a altura da cintura, os fios sedosos acompanhavam o movimento da dança, pés habilidosos moviam-se descalços sobre a grama verde. A Deusa nunca havia estado tão bela quanto naquela noite.

Os dois brincavam nus, na noite fria da floresta e alguns animais se juntavam ao redor da clareira para observá-los. Cansada a donzela se sentou olhando para o Cornudo enquanto esperava a música terminar, porém assim que o deus afastou a flauta dos seus lábios as figuras dos animais e da donzela desapareceram... não passavam de meras lembrança. A Deusa agora gravida estava no Mundo Subterrâneo sendo protegida pelos seus familiares enquanto esperava para dar a luz dentro de pouco tempo.

Era necessário que o Sol Novo nascesse, com isso o Deus Cornudo se levantou e andou com tristeza até o lago para observar o seu reflexo. Já estava velho e fraco, mas ainda continha muita energia, energia necessária para que a Deusa sobrevivesse ao parto que viria em menos de dois meses. Ele sabia que não podia continuar vivendo, a terra precisava do seu sangue e o Sol Novo da sua energia.

Um grito ecoou na sua mente, a Deusa sofria, aquele era o momento certo e então o Deus Cornudo olhou para os céus e para a mata se despedindo da sua casa. Tambores rufaram quando ele ergueu as mãos e pronunciou as palavras secretas, houve uma explosão e então ele desapareceu.

Em uma clareira nas montanhas era possível ouvir o barulho dos tambores de guerra, uma música rápida e repetitiva que tornava o ar agressivo e então com uma explosão o cornudo aparece no centro de um circulo com um olhar decidido no rosto.

O velho Cornudo tinha agora nas suas mãos uma adaga de ritual e quando ele a levantou apontada para o seu peito os tambores cessaram – nenhum barulho podia ser ouvido como se todo o mundo prendesse a respiração esperando por este momento onde os segundos pareciam durar milênios – o deus fechou os olhos e então levou a adaga de encontro ao peito. Os tambores voltaram a tocar.

Quando a lâmina fria rasgou a carne do Deus, não houve um grito, nem ao menos um sussurro de dor.... Apenas o som do sangue escorrendo e molhando a terra e então o Cornudo se ajoelhou com o rosto sereno e com as próprias mãos abriu a ferida para que os espíritos recolhessem a seu sangue.

O circulo só voltou a se tornar silencioso quando todos os espíritos partiram deixando só o Deus que se deitou para olhar as estrelas enquanto esperava que a paz voltasse a reinar pela floresta, ainda sentia o sangue escorrendo pelo corpo e regando o circulo mágico na floresta que seria o seu descanso eterno.

E do próprio solo e de um lugar mais distante que a estrela mais distante elevou-se um cântico, murmurado e pausado... talvez fossem as pequenas criaturas do subsolo, ou ainda as estrelas se despedindo do seu Deus.

Hoof and Horn, Hoof and Horn
All that Dies Shall be Reborn
Corn and Grain, Corn and Grain
All that Falls Shall rise again

 

                O Cornudo morreu sorrindo sabendo ser a semente do próprio renascimento, ele podia sentir a sua energia voltando ao útero da Grande Mãe que agora deixava de sofrer. Naquele momento os espíritos romperam a barreira entre os dois mundos e caminharam pela terra espalhando o sangue e a força do Deus para que pudéssemos sobreviver aos tempos difíceis que se aproximavam.

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                Lyla limpou uma lágrima solitária que escorria do seu rosto enquanto as crianças ainda a ouviam com total atenção.

                - É por isso que os espíritos vem ao nosso mundo nesta noite tão escura... Eles trazem consigo um pouco do sangue do Deus Cornudo que só renascerá no Solstício de Inverno. Eles trazem conselhos, proteção e promessas que vão nos guiar durante todo o período escuro do ano. Por isso devemos saudar os espíritos, porque sem eles, a semente do renascimento não seria espalhada. Agora vamos para a Casa Grande, esta na hora de começar o ritual.

                As crianças correram na frente em direção a Casa Grande deixando Lyla para trás, ela parou no meio do caminho deixando que os seus ouvidos escutassem os sons do além. E de algum lugar chegou aos ouvidos de Lyla um cântico: Hoof and Horn, Hoof and Horn..

                E então Lyla caminhou para a Casa Grande.



 

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